O trem, a pressa e a ansiedade

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“Piano, piano si va lontano”. – ditado popular italiano

Cresci em torno de uma comunidade italiana, especialmente alguns verões de minha infância, em que viajávamos para a casa de praia do nono e da nona em Arroio do Sal.

Depois, já na faculdade, morei num pensionato de irmãs Clarissas. E uma delas foi uma mentora para mim, irmã Odila (in memoriam), que sabia falar fluentemente italiano e até me ajudou em algumas traduções de músicas de Laura Pausini ou do CD de Renato Russo em italiano, ali pelo final dos anos 90, entre um chimarrão e outro depois da aula.  Eis que em momentos de reflexão na vida me aparecem máximas que ouvia dessas pessoas queridas. Por exemplo “buonasera” (boa tarde!), que o nono dizia quando nós crianças dormíamos até depois das 9h ou simplesmente “te fa bene”(te faz bem), que Odila dizia antes de me oferecer um prato de sopa, em um daqueles longos finais de semana do inverno porto-alegrense.

Esse artigo é sobre uma dessas expressões, “piano, piano si va lontano”, mais comumente traduzida como “devagar se vai longe”. A reflexão é sobre o valor desses conselhos de lenta absorção, trazidos na voz de mestres de nossa história, que alimentam uma certa amorosidade com os ritmos da vida.

Gosto muito da máxima do piano, piano porque simplifica de maneira absolutamente sábia as bases que precisamos para perseverar, desenvolver, alcançar nossos objetivos. Vale para a tentativa de diminuir de peso, melhorar o saldo na conta corrente ou atingir uma posição melhor em nossa carreira. É preciso constância, paciência, aceitação sobre o tempo de cada conquista. Ao mesmo tempo, é preciso comprometimento com uma visão de futuro, sem afobação ou angústia. A ideia é de que um dia, mantendo-se essa disposição, se chega “lá”, onde quer que esse lugar seja.

Falei sobre nossas metas intermináveis e o cansaço em tentar tanto e ter a percepção de não conseguir chegar na palestra Gestão de Emoções em Tempos Complexos, que realizei na semana passada na Conexo, em Caxias do Sul, para gestores de organizações locais, analistas de RH e profissionais do âmbito industrial em geral.

Conectei essas variáveis externas às turbulências em nosso universo emocional. Então percorri galáxias emocionais: tristeza, raiva, medo e especialmente ansiedade.

Sim, a personagem laranja e hiperativada, protagonista do Divertidamente 2, que existe para projetar cenários futuros, antecipar ameaças possíveis, imaginar desdobramentos de ações presentes… prever possibilidades que podem nunca acontecer. Mas que exercem, sim, enorme sofrimento no tempo presente. A ansiedade se caracteriza como essa imaginação projetada sobre as ameaças do futuro e, na prática, transforma-se em uma sensação de urgência, uma busca controle do que não podemos prever e um excesso de pensamento que paralisa a ação. Por sua alta energia, a ansiedade espanta todas as outras emoções da cabine de comando! Não é pouca coisa para se lidar.

Iniciava eu a palestra sobre essa bizarra personagem, tão conhecida de nossos embates emocionais, lembrando de uma metáfora trazida nos anos 90 por Pierre Bourdieu, em relação ao tempo “futuro”, globalizado e cibernético que nos aguardava na virada do milênio. Dizia ele que a ampliação de acesso a informações e notícias ocorridas do outro lado do globo acabariam por acelerar nossas mentes, algo
semelhante a olhar para uma paisagem estando em um trem de alta velocidade. Eu era então uma jovem estudante de jornalismo e lembro como essa visão de futuro manteve-se por um tempo em meu imaginário: como me parecia estranha a ideia de que apenas olhando para fora sentiríamos essa estranha vertigem de tentar ver algo que já não está mais ali.

Então, enquanto pensava na necessidade de desacelerarmos nosso ritmo, me veio a expressão piano, piano, dessa vez me dando conta que não necessariamente ela nos diz para irmos mais “devagar”. Em italiano, a palavra piano tem mais a ver com “de pouquinho” ou “silenciosamente”. Ou ainda, como explicava o maestro Manfredo Schmiedt, nas aulas de música do coral sinfônico da Fundação Ospa, para as partituras musicais, a expressão piano indica uma execução com intensidade sonora suave, agradável aos ouvidos. Como a voz agradável, meio doce de nona perguntando: “Quer pannocchia, filha?” (milho na espiga), naquele italiano misturado com português. O que vem como um contraponto ou antídoto a nosso tempo complexo, em que estamos todos muito ruidosos, necessitados de incontáveis coisas
e incríveis experiências.

Grandes feitos, grandes avanços, rumorosas conquistas. Que o digam as gritarias por atenção que invadem as redes sociais! Porque sim: a comparação constante acaba sendo um enorme indutor de mais ansiedade.

Não imaginava então que Bourdieu seria tão certeiro em sua análise e menos ainda podia supor que estamos todos em um trem de alta velocidade, tantas vezes esquecidos de que algum dia sequer existiu uma paisagem ou de para onde mesmo estamos indo. Não imaginava eu à época que seriamos tão preocupados com a visão que os outros estão tendo de nós, em que nos sentimos na vitrine de nossa própria vida, absorvendo toneladas de informação, projetando centenas de cenários mentais, sem sabermos ao certo onde o trem que embarcamos está nos levando. Aprendemos a ler entre os borrões, guardando unidades esguias de sentido, porém sentindo o desconforto de nos desprendermos do tempo presente. Acelerados, cansados, inconstantes. Não à toa, quando a ansiedade chegou na cabine de comando todas as outras emoções foram desconsideradas!

Para conectar isso tudo, recorro ao filósofo Alain de Botton. No livro A Arte de Viajar ele traz um trecho sobre uma viagem de trem na Europa que costumo utilizar em meus módulos de Autoconhecimento da Conexão IE:

“Ao fim de horas de devaneios ferroviários, podemos sentir que voltamos a nós mesmos – ou seja, fomos trazidos novamente ao contato com ideais e emoções importantes. Não é necessariamente em casa que encontramos nosso verdadeiro eu”.

O que os nonos, irmã Odila, Bourdieu e também Alain de Botton parecem dizer é que é preciso ir um pouco mais devagar, apreciando a jornada. Tomar tempo para fazer o que nos faz bem, prestando homenagem a lembranças caras de nossa trajetória pessoal. Apreciar momentos simples, em que distinguimos as imagens de entorno e descobrimos conexões com pessoas, histórias e situações que nos importam, permitindo que outras emoções sejam experienciadas.

Suavemente, é preciso discernir aonde queremos chegar, quais metas e objetivos nos servem e quais estamos apenas acumulando para nós sem que façam realmente sentido. É preciso dedicar um certo tempo para reflexões sobre o passado e lições já aprendidas, como fiz essa semana com as lembranças de bambina e de minha era “meio noviça”, na faculdade. Menos futuro, mais olhar para nossa jornada, justamente para integrar as diferentes emoções. Com calma e uma dose de espírito de aventura é possível desfrutar da viagem, respirar fundo, admirar a paisagem e, de vez em quando, olhar para nós mesmos, enquanto nos movemos nesse veloz trem da vida.

Texto por Alessandra Gonzaga, da Conexão IE

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